quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Um livro que leva a outro, ou como conheci Janusz Korczak

Quem gosta de uma boa leitura não precisa de muito pra abrir um livro: uma capa charmosa, um pocket que dá pra levar pra todo lugar, um preço em conta. Às vezes, o próprio livro te leva a outra leitura. E isso está cada vez mais comum. Muitos jovens, após lerem a série Crepúsculo, foram em busca do livro da Emily Brontë, o clássico “O Morro dos Ventos Uivantes” que é citado durante a história. E, mais recentemente, as vendas do “Diário de Anne Frank” aumentaram graças à febre do autor John Green, “A Culpa é das Estrelas”, devido à visita dos protagonistas a casa onde a jovem se refugiou durante a 2ª Guerra Mundial.

Esse tipo de coisa já aconteceu comigo também, é claro! Mas há um caso especial que se destaca entre os demais. Ocorreu durante a leitura do romance de Diane Ackerman, “O Zoológico de Varsóvia”. Essa obra é baseada em fatos verídicos e transporta o leitor para os anos da Segunda Grande Guerra. Acompanha-se os detalhes desse acontecimento não pelo ponto de vista dos detentores do poder nazista, mas sim, por meio de simples pessoas, testemunhas oculares dos horrores da destruição, que vivenciaram e sofreram num dos piores momentos da história da humanidade.


Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

Jan e Antonina formaram um casal apaixonado por animais que cuidou e direcionou o Jardim Zoológico de Varsóvia, capital da Polônia. Através dos escritos de Antonina, a autora Diane Ackerman revela o dia-a-dia dos cuidados do zôo e é quase possível sentir a brisa fria e o cheiro das flores de tília, como também os zunidos dos animais. Aos poucos, o leitor se depara com os rumores de guerra e também sofre com as expectativas. Até que, os boatos ficam para trás e dá-se início à essa terrível batalha que se tornou a mais injusta e impiedosa, tanto por seus macabros ideais, como também pela sua artilharia.

Jan e Antonina tiraram partido da obsessão dos nazistas com animais raros, "para salvar centenas de vizinhos a amigos ameaçados de extinção". Esconderam pelo território do zoológico e também na própria casa, quantos refugiados judeus puderam, colocando em risco suas vidas. O zoológico era um dos terrenos mais visados pelos alemães, "o coração do acampamento nazista", sendo inclusive alvo de suas caminhadas par se exercitar, e foi uma difícil tarefa mantê-los longe de suspeitas sobre o que realmente acontecia ali dentro.

Ao longo do livro, histórias paralelas de outros heróis são contadas, altruístas que dedicaram suas vidas a salvar outras, que disseram apenas que não fizeram nada mais do que era o certo a ser feito. Foram "pessoas comuns, nem impecáveis nem mágicas, e que a maioria permanece desconhecida a vida inteira, embora opte por perpetuar a bondade, mesmo em pleno inferno".


Uma dessas pessoas citadas no livro me chamou atenção. Seu nome é Henryk Goldzmit, mas seu pseudônimo é mais famoso: Janusz Korczak (1878-1942). Médico que exercia a pediatria, Korczak abandonou sua carreira promissora em 1912 para fundar um orfanato destinado a crianças de sete a quatorze anos de idade. Quando, em 1940, os judeus receberam ordens nazistas de se mudarem para o Gueto de Varsóvia, o orfanato foi transferido para o “bairro dos amaldiçoados”. Lá, Korczak protegeu, o quanto pode, crianças inocentes das atrocidades de um dos períodos mais tenebrosos da história. Todavia, o dia da deportação para o campo de extermínio chegou em 6 de agosto de 1942. Korczak, prevendo a calamidade e o pavor que tomaria conta daquelas pobres crianças, juntou-se a elas no trem destinado a Treblinka. No relato de Joshua Perle, testemunha ocular do fato, assim foi descrita a cena: “Ocorreu um milagre: duzentas almas puras, condenadas à morte, não choraram. Nenhuma delas fugiu. Ninguém tentou se esconder. Como andorinhas abatidas, elas se agarraram a seu mestre e mentor, a seu pai e irmão, Janusz Korczak”.

As crianças a caminho de Treblinka. Fonte: Michael Radoszewski

A força e a compaixão de Korczak por aquelas crianças também me comoveu e eu precisava saber mais desse ser humano tão corajoso e abnegado. Foi assim que eu descobri o lado pedagógico de Korczak. Ao se dedicar às crianças do orfanato, ele se tornou um verdadeiro educador. Foi precursor na luta em prol dos direitos da criança e do reconhecimento de total igualdade infantil. Registrou seu conhecimento e experiência em diversos livros especializados e também em romances. Dessa forma, cheguei a um de seus livros intitulado “Quando eu voltar a ser criança”. Nele, um adulto cansado de seus problemas sonha com os tempos áureos da infância e magicamente volta a ser uma criança. Sem perder a memória de adulto, ele revive as descobertas da infância através dos olhos da criança que se tornou.

Tradução de Yan Michalski. São Paulo: Summus, 1981. 16ª edição.

Em fevereiro de 2010, logo após a leitura do livro, eu escrevi sobre: O mundo nos molda, pressiona e aperta, até adquirirmos o formato da dureza, fruto das vivências. Porém, já houve uma fase em que a pureza habitava nosso ser. É provável que ainda guardemos alguns resquícios desse longínquo tempo chamado infância, mas, com certeza, muitas são as lembranças que já se apagaram. Quando nos deparamos com uma criança, parece que nos esquecemos de vez que um dia já fomos uma. Impomos nossa força e inteligência sobre elas, crendo na nossa superioridade. Nossa mente anda tão poluída com as preocupações do mundo adulto que acabamos por ignorar tudo o que se passa dentro desses pequenos seres. "Quando eu voltar a ser criança" é um livro encantador que, por meio dos olhos de uma criança, (re)ensina todos os sonhos, medos, descobertas, perdas, alegrias e tristezas de que é feito o mundo infantil. Um mundo tão cheio de cores, mas que podem se desbotar quando a inocência perde espaço para a realidade do crescer.

Espero que aqueles que estiverem lendo este texto também se sintam tocados pelo belo exemplo de Janusz Korczak e busquem conhecê-lo melhor através de seus livros e de sua história.


Um comentário:

  1. Vanessa, parabéns pelo texto! Sou natural de Salvador e, por acaso, encontrei essa postagem tão carregada de leveza e profundidade. Sou apaixonado por história, em relação à qual sinto-me um devedor, pois, quando optei por estudar direito, embora tal área guarde com aquela significativa afinidade, senti-me de certo modo traindo minha verdadeira vocação. Rsrs! Cordialmente, Maurício.

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